quarta-feira, 5 de maio de 2010

Contrato administrativo



Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.112.895 - SP (2007/0055799-8)
Data do julgamento: 17 de novembro de 2009.
RELATOR : MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES
RECORRENTE : COMPANHIA PAULISTA DE OBRAS E SERVIÇOS - CPOS
ADVOGADO : MARCOS ROBERTO DUARTE BATISTA E OUTRO(S)
RECORRIDO : CONSÓRCIO SERGEN CONSTRUBASE
ADVOGADO : LUIZ FELIPE MIGUEL E OUTRO(S)
INTERES. : ESTADO DE SÃO PAULO
PROCURADOR : TELMA BERARDO E OUTRO(S)
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO DE OBRA PÚBLICA. NOVA CASA DE DETENÇÃO DO CARANDIRU. PRELIMINAR DE CARÊNCIA DA AÇÃO AFASTADA. CONDIÇÕES DA AÇÃO AFERIDAS POSITIVAMENTE IN STATUS ASSERTIONIS . CONTINÊNCIA. TESE PREJUDICADA. OFENSA A DIVERSOS DISPOSITIVOS DE MATRIZ CONSTITUCIONAL. RECURSO ESPECIAL. VIA INADEQUADA. DISCUSSÃO DE FATOS E DE CLÁUSULA CONTRATUAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULAS N. 5 E 7 DESTA CORTE SUPERIOR. OFENSA A SÚMULAS DO TCU E DO STF. EXTENSÃO DO CONCEITO DE "LEI FEDERAL" PARA FINS DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO ESPECIAL. OFENSA À LEI ESTADUAL N. 8.524/93, CARACTERIZAÇÃO DE FORÇA MAIOR E ILEGALIDADE DA MULTA COBRADA. DISCUSSÃO QUE NÃO ESBARRA NAS SÚMULAS N. 5 E 7 DO STJ E NA SÚMULA N. 280 DO STF, ESTA POR ANALOGIA. FATOS QUE, ALÉM DE NOTÓRIOS, FORAM BEM DESCRITOS PELO ACÓRDÃO COMBATIDO. MULTA CONTRATUAL VS. APLICAÇÃO DA LEI N. 8.666/93. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. ART. 79, § 2º, DA LEI DE
LICITAÇÕES E CONTRATOS. PREJUÍZOS QUE PRECISAM SER COMPROVADOS.
1. Tem-se, aqui, hipótese em que foi firmado contrato administrativo para a construção da Nova Casa de Detenção do Carandiru. Contudo, em razão dos trágicos episódios no referido complexo prisional, foi elaborado um programa de desativação do presídio. A Administração Pública entendeu pela inconveniência da manutenção do contrato administrativo, sem, entretanto, rescindi-lo unilateral ou amigavelmente.
2. As constantes suspensões da execução do objeto licitado e contratado levaram a parte recorrida a notificar o Poder Público acerca de sua intenção de rescindir o contrato administrativo com base em cláusula contratual, reservando-se o direito de exigir multa de 10% sobre o valor restante (a cumprir) do contrato.
3. Nas razões do recurso, a recorrente (Administração) alega: (a) carência da ação (falta de interesse processual), uma vez que não foram cumpridos os requisitos estabelecidos no contrato que autorizassem a incidência de sua Cláusula 5.4 - rescisão unilateral pelo Poder Público antecedida de notificação prévia -, porque quem rescindiu o contrato foi a parte recorrida e não houve notificação prévia; (b) continência com o REsp 710.078/SP, distribuído ao Des. convocado Paulo Furtado, integrante da Terceira Turma desta Corte; (c) inocorrência de rescisão unilateral por parte da Administração Pública, pois nunca houve manifestação da recorrente no sentido de pôr fim ao contrato (invalidade de eventual ato administrativo que ensejasse a rescisão unilateral, tendo em conta que, se o silêncio da recorrente pudesse ser encarado como manifestação nesse sentido, não teria havido obediência à forma e à motivação); (d) impossibilidade de rescisão unilateral por parte da empresa contratada (ora recorrida) porque tal prerrogativa é exclusiva da Administração Pública; (e) incidência da Súmula n. 205 do Tribunal de Contas da União (TCU) - segundo a qual "[é] inadmissível, em princípio, a inclusão nos contratos administrativos de cláusula que preveja, para o Poder Público, multa ou indenização em caso de rescisão -, o que acarretaria a invalidade da Cláusula 5.4 do contrato que regia a relação entre as partes; (f) impossibilidade de continuar a execução do contrato em razão da edição da Lei estadual n. 8.524/93 - a qual desafetou a área onde se realizava a obra e determinou sua alienação (Carandiru) -, fato que acabou por conferir legitimidade à suposta rescisão unilateral por parte do Poder Público (fato do príncipe); (g) caracterização de força maior (suficiente para afetar a construção de novo presídio) em decorrência de rebeliões no presídio do Carandiru (tendo tais eventos resultado na Lei estadual n. 8.524/93); e (h) ilegalidade e irrazoabilidade da multa contratual aplicada em função do contrato - devendo pagamento de 10% sobre o valor faltante da execução da obra ficar condicionado à comprovação dos prejuízos que a parte recorrida efetivamente sofreu.
4. Em primeiro lugar, cabe análise da tese de carência da ação (item "a" do relatório). A discussão acerca do cumprimento dos requisitos para aplicação de cláusula contratual não é matéria preliminar, mas confunde-se com uma das questões de mérito da demanda (aferir a possibilidade de o particular rescindir o contrato unilateralmente escorado em cláusula contratual que autoriza tal medida apenas à Administração Pública) - conforme bem se verá em seguida -, motivo pelo qual está plenamente configurado, in status assertionis , o interesse processual da parte recorrida em ajuizar ação que objetiva a condenação da parte recorrente ao pagamento de multa prevista no contrato administrativo para os casos de rescisão unilateral. Precedentes.
5. Na esteira do que foi asseverado pela instância ordinária, em voto condutor analítico, "as partes são legítimas, na medida em que respondem pelo pactuado no contrato firmado entre elas. Há possibilidade jurídica do pedido, uma vez que a autora pede o cumprimento do contrato, que é 'lei' entre as partes. E, por fim, indubitavelmente presente o interesse de agir, eis que a ré nega-se a arcar com a multa pactuada, sendo imprescindível à autora socorrer-se da jurisdição, para rescisão judicial do contrato" (fl. 380).
6. Em segundo lugar, em relação ao item (b) do relatório, prejudicada a análise da continência com o REsp 710.078/SP, uma vez que tal recurso se encontra também sob minha relatoria, em razão da incompetência do relator original e da prevenção com o especial que ora se enfrenta.
7. Em terceiro lugar, os argumentos lançados em razão dos itens (c) e (d) do relatório podem ser avaliados conjuntamente.
8. Sobre tais pontos, importante destacar que o recurso especial foi fundamentado quase que integralmente no descumprimento dos termos da referida cláusula, várias vezes transcritas e pormenorizadamente analisada à luz dos fatos.
9. Ocorre que discutir se os requisitos arrolados em determinada cláusula contratual para fins de rescisão e indenização requer, de início, a análise do contrato que regeu a relação entre as partes, o que é vedado pela Súmula n. 5 desta Corte Superior.
10. No mais, saber (i) se houve ou não manifestação da recorrente no sentido de pôr fim ao contrato, (ii) se foi ou não realizada notificação feia pela empresa recorrida a outra parte e (iii) se os dispositivos legais apontados restaram violados envolve reapreciação do conjunto fático-probatório carreado aos autos, situação que encontraria óbice na Súmula n. 7 do Superior Tribunal de Justiça - STJ.
11. Em quarto lugar, quanto ao item (e) do relatório, as súmulas não se enquadram no conceito de "lei federal" para fins de interposição de recurso especial, motivo pelo qual não se pode conhecer de ofensa a Súmula n. 205 do TCU. Precedentes.
12. Contudo, e em quinto e último lugar, no que tange aos itens (f), (g) e (h) do relatório - Lei estadual que desafetou a área onde se realizava a obra e determinou sua alienação (Carandiru), caracterização de força maior no caso concreto e condicionamento do pagamento da multa à comprovação dos prejuízos suportados pelo recorrido -, assim se manifestou a origem (fls. 379/380): "Trata-se de contrato administrativo firmado entre as partes (na origem Consórcio Sergen/Construbase e CDHU, sendo esta última substituída em direitos e deveres pela Companhia Paulista de Obras e Serviços - CPOS, cf. fls. 44/51), após a realização da devida licitação, para a construção da Nova Casa de Detenção do Carandiru. Depois de iniciada a execução do contrato, em 21.12.1990 (cf. fls. 43), esta foi sucessivamente suspensa, a partir de 22.12.1993 (cf. fls. 143, 52/53, 54/55, 56/57 e 58/59). Isto em função de Estudos e Programa de Desativação do Complexo Prisional do Carandiru. As reiteradas suspensões por parte da CPOS levaram o CONSÓRCIO SERGEN/CONSTRUBASE a notificá-la de que, caso não fosse dada continuidade à execução do contrato, seria este considerado rescindido unilateralmente por parte da CPOS, incidindo a cláusula 5.4 e seguintes do contrato, na qual está prevista a multa aqui cobrada (cf. fls. 60/61 e 37/42). Houve contra-notificação (fls. 64/66). Daí a presente ação. [...] Depreende-se dos autos que o contrato firmado vinha sendo regularmente cumprido pela autora, que executava as obras a contento. Em dado momento, de acordo com critérios de conveniência e oportunidade mensurados exclusivamente por parte da ré, a execução das obras e serviços foi reiteradamente suspenso".
13. Como se observa, os fatos estão bem delineados pela instância ordinária. Muitos deles, inclusive, podem ser caracterizados como notórios, dispensando prova e análise de lei local (Súmula n. 280 do STF, por analogia), notadamente aqueles que dizem respeito à opção da Administração Pública de não prosseguir na construção de uma Nova Casa de Detenção do Carandiru em função das rebeliões sangrentas que tomaram lugar no complexo prisional, sobretudo em função de sua localização em perímetro urbano.
14. Daí porque avaliar se, no caso, ficou ou não caracterizada a força maior – a ensejar o afastamento de cláusula contratual para atrair a incidência da Lei n. 8.666/93 - não esbarra nas Súmulas n. 5 e 7 do Superior Tribunal de Justiça, na medida em que não há controvérsia acerca dos fatos, mas sim acerca de sua qualificação jurídica.
15. No ponto, assiste razão à parte recorrente.
16. Sem adentrar na aplicabilidade da cláusula contratual multicitada - que, como já dito anteriormente, incorreria na vedação imposta aos membros desta Corte Superior por suas Súmulas n. 5 e 7 -, a verdade é que a constatação da incidência do art. 79, § 2º, da Lei n. 8.666/93, reconhecida pela origem em razão da caracterização do descrito no art. 78, inc. XIV, do mesmo diploma normativo, jamais levaria ipso facto à aplicação de multas previstas no contrato.
17. Ao contrário, a Lei de Licitações e Contratos (Lei n. 8.666/93) é clara ao asseverar que, reconhecida a suspensão irregular e prolongada do contrato, ou mesmo a ocorrência de força maior, como pretende a recorrente, a parte contrária faz jus apenas aos prejuízo que venha a comprovar nos autos.
18. Em outras palavras: pouco importa, para os deslindes que aqui se pretende, se se trata de aplicação do inc. XIV (enquadramento feito pela origem), do inc. XVII (enquadramento que pretende a recorrente) ou do inc. XII (outro possível enquadramento) do art. 78 da Lei n. 8.666/93, porque, nos três casos, haveria a incidência do § 2º do art. 79 da mesma Lei, segundo o qual a parte recorrida só teria direito à devolução de garantia, aos pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão e ao pagamento do custo da desmobilização, além daquilo que efetivamente comprovar a título de prejuízo.
19. Em contratos administrativos, embora deva ganhar relevância a vontade das partes, não se pode esquecer da existência da Lei n. 8.666/93. Não pode existir cláusula contratual que afaste a lei, até porque a Administração está premida pelo princípio da legalidade (CR/88, art. 37, caput) - longe de lícita, este tipo de conduta, a que coloca a vontade contratual do particular no âmbito do Poder Público acima e/ou contra a lei, poderia inclusive configurar crime. Daí porque impossível condenar a Administração com fundamento na cláusula contratual pura e simples, sem levar em conta o art. 79, § 2º, da Lei n. 8.666/93.
20. Obviamente, pode vir a ser que, em liqüidação, a parte recorrida consiga comprovar que os prejuízos sofridos equivalem ao valor imposto a título de multa pela cláusula contratual controversa. No entanto, trata-se de matéria de prova que deverá ser avaliada na fase processual adequada, e não questão que possa ser resolvida com incidência objetiva e pontual de cláusula do contrato administrativo, a despeito das considerações legais pertinentes ao caso.
21. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido em parte apenas para excluir a multa de 10% sobre o valor restante (a cumprir) do contrato.

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